Mitologia

  • DEUSA ÍSIS


Nenhuma personalidade do panteão egípcio pode rivalizar com a deusa Ísis, sublime essência da alma de uma das mais excelsas e proeminentes civilizações da antiguidade e maga detentora do esplendor ofuscante que a conduziu até ao auge da popularidade. Surgindo na teologia heliopolitana como fruto dos amores entre o céu (Nut) e a terra (Geb), Ísis reinara com uma sabedoria incontestável nas Duas Terras, o Alto e o baixo Egipto, muito antes do nascimento das dinastias. O amor que unia Ísis a Osíris em ternos esponsais vestia a sua alma com uma felicidade que abraçava o Infinito. Todavia, em breve a doce melodia que tão mítica perfeição dedilhava na harpa da sua vida seria, pelas trevas, resumida a um rol de acordes dissonantes, orquestrados numa sinfonia de silêncio e dor.

Tão vil prelúdio de uma noite sem fim surgiu sob a forma de um convite de Seth, que solicitava afavelmente a presença de seu irmão Osíris num banquete. Sem jamais cogitar que se tratava de uma ímpia conjuração, Osíris não declinou a oferta, colocando-se então à mercê de um execrável assassino. Algures no decorrer do banquete, Seth apresentou um caixão de proporções verdadeiramente excepcionais, assegurando que recompensaria generosamente aquele que nele coubesse. Imprudente, Osíris aceitou prontamente o desafio, permitindo que Seth e os seus acólitos pregassem a tampa e consequentemente o tornassem escravo da morte. Cometido o hediondo crime, o assassino Seth, que cobiçava ocupar o trono de seu irmão, lança a urna ao Nilo, para que o rio a conduzisse até ao mar, onde veio a perder-se. Este trágico incidente deu-se no décimo sétimo dia do mês Athyr, quando o Sol se encontra sob o signo de Escorpião. Quando Ísis tomou conhecimento do ocorrido, baniu de sua alma todo o desespero que a assombrava e abraçou a resolução de procurar o seu marido, a fim de lhe restituir o sopro da vida. Assim, cortou uma madeixa do seu cabelo, estigma da sua desolação, colocou o seu vestuário matutino e errou por todo o Egipto, na ânsia de ver a sua diligência coroada de êxito.

Por seu turno, e após haver dançado nas ondas do mar, a urna atingiu finalmente uma praia, perto da Babilónia, na costa do Líbano, enlaçando-se nas raízes de um jovem tamarindo, cujo prolixo crescimento a prendeu no interior do seu tronco. Ao alcançar o clímax da sua beleza, a imponente árvore atraiu a atenção do rei desse país, persuadindo-o a ordenar ao seu séquito que o tamarindo fosse derrubado, com o fito de ser utilizado como pilar na sua casa. Em simultâneo com o crescimento da referida árvore, Ísis prosseguia tão exaustivas busca pelo cadáver de seu marido, pelo que, ao escutar as histórias tecidas em torno da surpreendente árvore, tomou de imediato a resolução de ir à Babilónia, na esperança de ultimar enfim e com sucesso a sua odisseia. Ao chegar ao seu destino, Ísis sentou-se perto de um poço, ostentando um disfarce humilde e brindou os transeuntes que por ela passavam com um rosto lavado em lágrimas. Os relatos da sua inusitada condição rapidamente chegaram aos reis da Babilónia, que, intrigados, propuseram-se a conhecer o motivo de tanto desespero. Quando Ísis os viu estancar defronte de si, presenteou-os com saudações cordiais, reverentes e, solicitou-lhes que permitissem que os seus cabelos ela entrançasse. Uma vez que os regentes, embora servos da perplexidade, não impuseram qualquer veto ao seu convite, Ísis uniu o gesto à palavra, incensado as tranças que talhava pouco a pouco com o divino perfume exalado por seu ástreo corpo. Ultimado tão peculiar ritual, a rainha da Babilónia apressou-se a contemplar o resultado final, sendo enfeitiçada pelo irresistível aroma que seus cabelos emanavam. Literalmente inebriada por tão doce perfume dos céus, a rainha ordenou então a Ísis que a acompanhasse até ao palácio.
Assim, a deusa franqueou a entrada do palácio do rei da Babilónia, junto do qual conquistou o privilégio de tornar-se na ama do filho recém-nascido do casal régio, a quem amamentava com o seu dedo. Devido aos laços que a vinculavam à criança, Ísis desejou conceder-lhe a imortalidade, pelo que, todas as noites, a queimou, num fogo divino e, como tal, indolor, para que as suas partes mortais ardessem no esquecimento. Certa noite, durante este processo, ela tomou a forma de uma andorinha, a fim de cantar as suas lamentações. Maravilhada, a rainha seguiu a melopeia que escutava, entrando no quarto do filho, onde se deparou com um ritual aparentemente hediondo. De forma a tranquilizá-la, Ísis revelou-lhe a sua verdadeira identidade, e ultimou precocemente o ritual, mesmo sabendo que dessa forma estaria a privar o pequeno príncipe da imortalidade que tanto desejava oferecer-lhe. Observando que a rainha a contemplava, siderada, Ísis aventurou-se a confidenciar-lhe o lancinante incidente que a coagira a visitar a Babilónia, conquistando assim a confiança e benevolência da rainha, que prontamente aquiesceu em ceder-lhe a urna que continha os restos mortais de seu marido. Dominada por uma intensa felicidade, Ísis apressou-se a retirá-la do interior do pilar. Porém, fê-lo com tão negligente brusquidão, que os seus escombros de pedra espalharam-se por toda a divisão, atingindo, mortalmente, o pequeno príncipe. Na realidade, existem inúmeras versões deste fragmento da lenda, uma das quais afirma que a rainha expulsou Ísis, ao vislumbrar o aterrador ritual, pelo que esta retirou a urna, sem o consentimento dos seus donos. Porém, a veracidade desta versão semelha-se deveras suspicaz...

Com a urna em seu poder, Ísis regressou ao Egipto, onde a abriu, ocultando-a, seguidamente, nas margens do Delta. Numa noite, quando Ísis a deixou sem vigilância, Seth descobriu-a e apoderou-se, uma vez mais dela, com o intento de retirar do seu interior o corpo do irmão e cortá-lo em 14 pedaços, que foram, em seguida, arremessados ao Nilo. Ao tomar conhecimento do ocorrido, Ísis reuniu-se com a sua irmã Néftis, que não também tolerava a conduta de Seth, embora este fosse seu marido, e, juntas, recuperaram todos os fragmentos do cadáver de Osíris, à excepção, segundo refere Plutarco, escritor grego, do seu sexo, que fora comido por um peixe. Novamente deparamo-nos com alguma controvérsia, uma vez que outras fontes egípcias afirmam que todo o corpo foi recuperado. Acto contínuo, Ísis organizou uma vigília fúnebre, na qual suspirou ao cadáver reconstituído do marido: “Eu sou a tua irmã bem amada. Não te afastes de mim, clamo por ti! Não ouves a minha voz? Venho ao teu encontro e, de ti, nada me separará!” Durante horas, Ísis e Néftis, de corpo purificado, inteiramente depiladas, com perucas perfumadas e boca purificada por natrão (carbonato de soda), pronunciaram encantamentos numa câmara funerária ignota, que o incenso queimado impregnava de espiritualidade. A deusa invocou então todos os templos e todas as cidades do país, para que estes se juntassem à sua dor e fizessem a alma de Osíris retornar do Além.

Uma vez que todos os seus esforços revelavam-se vãos, Ísis assumiu então a forma de um falcão, cujo esvoaçar restituiu o sopro de vida ao defunto, oferecendo-lhe o apanágio da ressurreição. Seguidamente, Ísis poisou no sítio do desaparecido sexo de Osíris, fazendo-o reaparecer por magia, e manteve-o vivo o tempo suficiente para que este a engravidasse. Em contraste, outras fontes garantem que Osíris e a sua esposa conceberam o seu filho, antes do deus ser assassinado pelo seu irmão, embora a versão mais comum seja a relatada, primeiramente. Assim, ao retornar à terra, Ísis encontrava-se agora grávida do filho, a quem protegeria até que este achasse-se capaz de enfrentar o seu tio, apoderando-se (como legítimo herdeiro) do trono que Seth havia usurpado. Alguns declaram que Ísis, algum tempo antes do parto, fora aprisionada por Seth, mas que Toth, vízir de Osíris, a auxiliara a libertar-se. Porém, muitos concordam que ela ocultou-se, secretamente, entre os papiros do Delta, onde se preparou para o nascimento do filho, o deus- falcão Hórus. Quando este nasceu, Ísis tomou a decisão de dedicar-se inteiramente à árdua incumbência de velar por ele. Todavia, a necessidade de ir procurar alimentos, coagiam-na pontualmente a ausentar-se, deixando assim o pequeno deus sem qualquer protecção. Numa dessas ocasiões, Seth transformou-se numa serpente, visando espalhar o seu veneno pelo corpo de Hórus, pelo que quando Ísis regressou da sua diligência, encontrou o seu filho já próximo das morte.
Todavia, a sua vida não foi ceifada, devido a um poderoso feitiço executado pelo deus- sol, Ra.
Dada a sua devotada protecção, Ísis era constantemente representada na arte egípcia a amamentar tanto o seu filho, como os faraós. Sendo um dos mais populares vultos da mitologia egípcia, cujo nome é representado por um trono (e crê-se que terá mesmo esse significado), Ísis assume o lugar de deusa da família e do casamento, a quem foram concedidos extraordinários poderes curativos, empregues, essencialmente, para salvar crianças de mordeduras de cobras. Devido às suas qualidades maternais, surge, por vezes, com a forma de uma porca ou de uma vaca, o que leva a que seja confundida com Háthor (deusa do amor), com quem, na realidade, se fundiu, na Época Baixa (664-332 a.C./ XXVI- XXX Dinastias), período de tempo em que o seu culto atingiu o auge. Deste modo, o seu culto proliferou-se por toda a bacia mediterrânea, na qualidade de Ísis- Afrodite, o que demonstra bem a forma como os romanos lhe prestavam culto, esculpindo imagens em sua homenagem, nas quais ela surgia, muitas vezes, com uma túnica que flutua ao vento e com um toucado composto por espigas, chifres de vaca, um disco solar e penas de avestruz.

 Em torno do seu temperamento bravio (tão díspar da sua maternidade e benevolência!), teceu-se igualmente outra lenta, que narra a forma como Ísis, intrigada com o segredo que sustinha os poderes de Ra, conjura para obter o nome secreto do Senhor Universal, matriz das suas forças e esplendor. Assim, recolhe um pouco da sua saliva, amassa-a com terra e, com essa argila, molda uma serpente em forma de flecha, que coloca na encruzilhada dos caminhos desbravados pelo cortejo solar. Escrava da magia de Ísis, a serpente não hesita em morder Ra à sua passagem, que, com um silvo de dor, desfalece. Quando recupera a consciência, o deus- sol evoca, desesperado, todos os deuses, relatando-lhes o seu infortúnio: “ O meu pai e a minha mãe ensinaram-me o meu nome e eu dissimulei-o no meu corpo, para que mago algum o possa pronunciar como malefício para mim. Tinha eu saído para contemplar a minha criação, quando algo que desconheço me mordeu. Não foi nem fogo, nem água; mas o meu coração está em chamas, o meu corpo treme e os meus membros estão frios. Tragam-me os meus filhos, os que conhecem as fórmulas mágicas e cuja ciência chega aos céus!”. Ísis debruça-se sobre Rá e, simulando uma estupefacção imensurável, questiona: “ Que se passa? Ter-se-ia um dos teus filhos erguido contra ti? Então, destruí-lo-ei graças ao meu poder mágico e farei com que seja expulso da tua vista!” Quando o deus- sol lhe confidenciou a matriz do seu padecimento, Ísis assegurou-lhe que somente lhe entregaria o vital antídoto, caso este lhe revelasse a origem das suas imensuráveis forças. 
Exasperada por Rá se negar a atender á sua reivindicação, Ísis solicitou, novamente: “Diz-me o teu nome, meu divino Pai! Porque o homem só revive quando é chamado pelo seu nome!”
Escravizado pelo desespero, a personificação da luz oferece a Ísis um rol interminável de nomes falsos, na ânsia de que a deusa não alcançasse a percepção de que ele procurava ludibriá-la. Todavia, Ísis replicou: “ O teu nome não está entre aqueles que citaste! Diz-mo e o veneno abandonará o teu corpo, porque o homem revive quando o seu nome é pronunciado.”
Subjugado pela dor, Rá aceita o ultimato, mesmo sabendo que tal concederia a Ísis autoridade sobre a sua pessoa. Num suspiro, declara então: “Olha, minha filha Ísis, de modo que o meu nome passe do meu corpo para o teu... Mal ele saia do meu coração, repete-o ao teu filho Hórus, submetendo-o a um juramento divino!”

Na realidade, todas as deusas egípcias possuíam esta dualidade, que as colocava entre a crueldade extrema e a indulgência infinita, num jogo de luzes e sombras que não as impediram de ser adoradas através dos tempos. A sua imagem é omnipresente e tanto cobre os sumptuosos santuários do Vale do Nilo, como os mais íntimos testemunhos de devoção pessoal. Porém, ao percorrermos o Egipto, deparamo-nos com três locais particularmente abençoados com a magia de Ísis:

Behbeit el- Hagar, no Delta, onde um sumptuoso templo foi erigido em honra de Ísis. Malogradamente, o halo de magia e espiritualidade que nimba esta excelsa deidade revelou-se impotente para deter aqueles que, não votando qualquer respeito pela sua índole sagrada, cometeram a ignomínia de destruir tão colossal santuário, onde os céus se reflectiam e renovavam num jogo divino, a fim de o transformar numa pedreira. Consequentemente, Behbeit el- Hagar é na actualidade um local quase literalmente desconhecido dos turistas e que semeia uma franca desilusão nos corações dos intrépidos que ainda o ousam visitar, pois a grandeza daquele que fora outrora um templo dedicado a uma divindade verdadeiramente excepcional resume-se agora a um monte de escombros e blocos de calcário ornados de cenas rituais.
Dendera, no alto Egipto, eterno berço de feitiços onde Ísis desabrochou para a vida, onde nos deparamos com um santuário de Háthor parcialmente conservado, com um templo coberto e com o mammisi, ou seja, “templo do nascimento de Hórus), assim como com um exíguo santuário, onde a etérea Ísis nasceu, deslumbrando o mundo com sua pele rosada e revolta cabeleira negra.
Filae, ilha- templo de Ísis, que serviu de refúgio à derradeira comunidade iniciática egípcia, mais tarde (séc. VI d. C., mais precisamente) exterminada por cristãos escravos do fanatismo.


Verónica Freitas


DEUS TOT

Excelso lótus de névoas diamantinas, irresistivelmente perfumado pelo mais místico delirar da poesia, que um ósculo da Via Láctea, lascivamente eivado de feitiçaria pagã, semeara nos lábios constelados do Infinito, a Lua saciava a sede de Tot com o orvalho de magia cósmica que as pétalas de seu corpo astral rociava, docemente. Seu refulgente olhar de feitiços de prata, supremo vidente dos enigmáticos oráculos do Universo, convidava-o a colher o fruto de imortalidade que abençoava o seu paraíso de luz imaculada, etereamente recamado de nascentes de sapiência ancestral, que se ofereciam, na magnificência de seu esplendor secular, a todos aqueles que se proponham a errar pela noite da vida, guiados pela estrela peregrina do conhecimento, eterna pedra filosofal, esculpida por Tot no apogeu da Criação, que convertia as trevas plúmbeas da ignorância, qual abismo onde somente o caos se manifestava, na luz transcendental, inebriante brisa de ouro, que acariciava o nascimento do jardim da humanidade, a fim de nele depositar a semente da sabedoria divina. Com efeito, Tot era proclamado, pelos fervorosos teólogos de Hermopólis, eterno imo do seu culto, como o lídimo Ourives da Criação, que, qual demiurgo universal incarnara uma íbis, a fim de chocar o ovo do mundo, tingindo de seguida na tela do universo vítreo, a excelso pintura da vida, numa obra de arte ímpar apenas concebida pela magnificência do som de sua voz.

Esta cosmogonia esculpe no ouro da sua identidade a personificação da inteligência divina, imprescindível naquele que não era senão uma deidade criadora e auto- criada, indigitando-o assim líder da Ogdóade de Hermopólis, um grupo de oito deuses, mais exactamente de quatro casais, sendo os homens facilmente reconhecidos através das suas cabeças de rã, em contraste com as suas esposas que ostentavam cabeças de serpente. Este grupo divino incarnava os pilares que haviam sustido a fundação do Universo: o casal original, isto é, aquele que Nun, personificação do oceano primordial, e Nunet, espaço celeste suspenso sob o abismo, constituíam; o casal Hehu e Hehet, ou seja, os espaços imensuráveis e impossíveis de destinguir subjacentes ao caos; o casal Keku e Keket, fruto das trevas e obscuridade; e por fim Ámon e Amaunet, símbolos do desconhecido, ou seja, dos enigmas que haviam nimbado o caos. A cidade edificada em honra destes oito deuses, actualmente denominada de El- Achmunein, era conhecida primitivamente por Khemenu, ou, na realidade, “A cidade dos oito deuses”. Todavia, a identificação vinculada entre Tot e Hermes, permitiu aos gregos apelidarem-na de Hermopólis, epíteto que se difundiu e estabeleceu através do tempo e das civilizações. Não obstante a noite pejada de obscuridade que vela o seu nascimento (determinadas fontes afirmam que Tot nasceu do crânio de Set, enquanto outras proclamam que o deus- íbis floresceu do coração do criador num momento de melancolia), indubitável é a sublimidade da chama de sabedoria divina, ateada pela suas invejáveis sagacidade e perícia, que dança na alma do arguto deus- íbis. Como soberano do fecundo reino do conhecimento, Tot sentiu ser vital a difusão dos insignes tesouros que este em sua imensidão guardava, pelo que abraçou a resolução de inventar um instrumento apto a garantir a transmissão perpétua das ciências por ele cultivadas: a escrita. Qual primeiro raio de luz bailando nos jardins dos céus, a escrita fende o luto da noite, a fim de passear pelas fragrantes rosas dos hieróglifos, de brincar na árvore da comunicação, que o Verbo e a Palavra, doce frutos dos deuses, coroavam num halo de fastígio.
A poesia, primeira manhã do mundo das almas, é cálice de Sol vertido pela taça de sua sapiência. Os livros, alimento do intelecto, seu testemunho. Em harmonia com esta ideologia, os Egípcios aludiam aos seus hieróglifos como medu- netjer, ou seja, “palavras do deus”, numa flagrante oblação ao deus- íbis. Enquanto fautor da escrita, perpétua arauta do pensamento, Tot conquistou o epíteto de neb medu- netjer, em português “O Soberano das Palavras Mágicas”. Ao integrar a elite do panteão egípcio, Tot converte-se em depositário das confidências do excelso soberano dos deuses, equivalente ao faraó na terra, garantindo assim a denominação de “Ré disse; Tot escreveu”. Não constitui, deste modo, qualquer surpresa constatar que, num ápice, Tot alcançou a preeminente posição de guardião dos arquivos divinos, emissário e escriba dos deuses. No seio da comunidade celestial, é o deus- íbis quem abraça a incumbência de permitir que a praia de luz, formada pelos cristais de luz das etéreas almas dos deuses egípcios, seja docemente banhada pelo mar da harmonia cósmica. Por conseguinte, era ele que, através da análise das inúmeras regras ditadas pelo criador na fundação do Universo, procura solucionar todas as querelas e desaires semeados na sociedade dos céus. Desta forma, buscando a aplicação das leis estabelecidas aquando da excelsa matriz da vida, os deuses reuniam-se em assembleias, marcando o início de morosos julgamentos que, com frequência, se prolongavam durante alguns anos. Escutadas e interpretadas todas as vozes envolvidas nos debates e recontros, Tot evoca a sua sapiência e sela o julgamento com uma decisão apta a implantar a paz, onde outrora o caos reinara. Resolução alguma deverá sem perpetrada sem o consentimento do escriba divino.

A polivalência intelectual de Tot faculta-lhe a prerrogativa de invadir e conquistar todo o reino das ciências, pelo que ele é igualmente o deus das matemáticas, o calculador primordial e imbatível. Dominando a criatividade e a razão, o deus- íbis ousou estipular sozinho os limites dos nomos e as fronteiras das terras, concebendo assim “o ordenamento do País Duplo (Egipto) e a organização das províncias; e não hesitou em erguer todos os santuários dos deuses, dado possuir o monopólio do traçado e das plantas. Além de oferecer-lhe o título de “Arquitecto Divino”, esta liberdade tornou-o também patrono dos escribas, dos médicos, dos mágicos e dos arquitectos. Vestido pelo sumptuoso cetim de prata que o luar tece na magia do Infinito, Tot preside igualmente ao festim de feitiços e sonhos, oferecido pela noite no seu excelso palácio de abismos constelados. Incarnação da Lua, eterna maga de fantasias pagãs, Tot fendia a mortalha de trevas e pez que sufocava a essência da noite com a luz imaculada de sua adaga de feitiçaria divina. No cosmos do tempo, a intemporal estrela de um mito imortaliza com seu fulgir ofuscante o incidente que inspirou ao deus- íbis a poesia da Lua. Segundo este, Ré, cujo coração exânime, dilacerado pelos infindáveis conflitos da humanidade, naufragava nos mares da exaustão do sentir e do querer, cede à tentação de abdicar parcialmente da sua existência na terra, em prole de uma vida serena nas alturas celestes. O seu auto- exílio lança o tempo no abismo do caos, visto que doravante o astro- rei somente abençoaria a os seus súbditos terrenos durante o dia, abandonando-os, por conseguinte, às trevas e ao caos, no decorrer da sua viagem pelo mundo subterrâneo. Receando pela sorte da alma humana, Ré evoca então Tot, a fim de o indigitar seu substituto. O poderoso regente dos céus proclamou então: “ Farei com que rodeies os dois céus com tua beleza e claridade. E assim nascerá a Lua”. O seu passeio compassado pelos vales dos céus privilegiou-o com outro dos céus díspares epítetos: “Touro entre as estrelas”. Esta vertente de substituto do Sol durante a noite justificou igualmente que, durante a Época Baixa, o apelidassem de “Áton de prata”. 
Tornado Senhor do Tempo e das Estrelas, Tot ou “Governante dos anos” sonhara igualmente o calendário, permitindo uma distinção entre os dias, os meses, as estações e os anos. De facto, o deus íbis cometeu a audácia de reinventar o conceito de tempo, a fim de prestar auxílio à deusa Nut, incarnação do céu, que, seu o consentimento de Ré se havia unido a Geb, personificação da terra, em lustrais núpcias divinas, fomentando assim a ira do regente supremo dos deuses, que, irado, coagiu Chu a apartar os dois amantes clandestinos, num ímpio desaire: Nut, grávida de cinco meses, jamais poderia dar à luz no espaço de tempo compreendido pelo calendário oficial. Por conseguinte, Tot, saboreando o néctar de criatividade que resvalava do fruto de sua extasiante inteligência, propôs-se a jogar aos dados com a lua, na ânsia de obter cinco dias suplementares, isto é, a septuagésima segunda parte da sua luz, que acolhessem o nascimento dos cinco filhos de Nut (Osíris, Set, Ísis, Néftis, e Horús, o Antigo). Outra flor de míticos encantamentos, vogando sem rumo na corrente do translúcido Nilo da mitologia egípcia, insinua-se em nossos sentidos, através do seu perfume de quimeras ancestrais, convidando-nos a presenciar um dos mais ferozes recontros que opôs Hórus a seu tio Set e que culminou com o dilacerar do olho esquerdo do deus falcão (personificação da Lua, em contraste com o olho direito que simbolizava o Sol). Prontamente, Tot ofereceu-lhe os seus préstimos, restaurando a visão a Hórus, ao substituir o olho dilacerado pelo amuleto uadjet, o que restituiu a harmonia ao cosmos e a magia ao deus- falcão.

Coroado pela sua beatífica sabedoria regente do generoso éden do conhecimento, Tot esculpira o seu trono na prata da Lua e o seu ceptro na jóia rara da magia suprema. Efectivamente, encontramos em Hermopólis, sua morada eterna, um tempo luxuriante, cujas criptas acolhiam papiros místicos, redigidos por aquele que constituíra o primeiro dos mágicos, venerado e imitado por todos os seus devotos discípulos. Estes, na ânsia de desbravarem a floresta proibida do conhecimento, em cujo coração pulsava a essência da magia, elevavam preces a Ré, crentes de que este conduziria Tot até eles: “Ó velho que rejuvenesceu no seu tempo, velho que se tornou criança, possas tu fazer com que Tot venha até mim, respondendo ao meu chamado”. A mitologia egípcia atribui-lhe a autoria das díspares fórmulas mágicas e textos simbólicos que o morto, ou melhor, o maé- kheru (justificado) ou maet- kheru (justificada) pronunciavam ao franquear as portas do Além e, mais exactamente, no decorrer do julgamento celestial, presidido por Osíris. Suspiros do passado confiam-nos que Tot legou também à eternidade um livro de magia e quarenta e dois volumes, que testemunhavam, sustinham e renovavam toda a magia do cosmos. Por conseguinte, prestar culto ao deus- íbis revelava-se incontornável e, na realidade, capital, para qualquer sábio. De facto, todos os escribas que ornavam de sabedoria a alma do Egipto, desde os mais humildes aprendizes, ou em egípcio, sebati, ao mais proeminente mestre (sebá) ritualizavam a sua devoção, derramando algumas gotas de tinta numa notória oblação a Tot. 
Por último, Tot tece, juntamente com inúmeras outras deidades, o destino dos inumados no Além, exercendo a função de escriba divino e arauto dos deuses fúnebres. Desta forma, é ele quem introduz o defunto no recinto celestial onde será julgado, para, após a pesagem do coração deste, registar, nas tabuinhas sagradas, o veredicto proferido por Maet. Os sonhos de amor que a existência semeava no coração de Tot eram cultivados e ditados pela noite da geografia e pelas veleidades e metamorfoses da alma humana, pois em Hermopólis, o deus- íbis era proclamado esposo da sagaz Sechat, deusa dos anais e da história, que lhe ofereceu um filho de nome Hornub, enquanto que em Heliópolis Nehemetauai, isto é, “aquela que erradica o mal” era tomada por sua mulher, concebendo com ele Hornefer. Alguns devaneios da mitologia revelam que Tot desposou igualmente Maet, a etérea filha de Ré, versão suplantada por aquela que consignava a união de Tot e Tefnut, resultante da fuga do Olho de Ré para a Núbia, sob a forma da graciosa deusa. Incumbido de a restituir ao seu legítimo proprietário, o deus– íbis não terá resistido aos seus encantos, desposando-a no seu retorno ao Egipto. Porém, enquanto entidade intelectualmente superior, abençoada pela consciência da incomensurabilidade da sua sagacidade, Tot bebe da fonte da pretensão, tornando-se terrivelmente enfadonho, displicente e com uma hedionda propensão a exibir a sua inteligência através de uma retórica prolixa, escrava de uma abominável e excessiva facúndia, tal como sugere um determinado episódio do mito osírico: Na ânsia de escapar à pravidade do deus Seth, Ísis, sustendo nos braços seu filho Hórus, toma os pântanos de Chemnis, como seu refúgio de eleição. Coagida pela escassez de alimentos, a deusa abandona todas as manhãs o seu filho, a fim de assegurar a subsistência de ambos. Contudo, uma noite, ao retornar de mais uma extenuante peregrinação em busca de géneros alimentares, Ísis deparou-se com Hórus inconsciente e, desesperada, evocou Rá, que, por seu turno, não hesitou em solicitar a Tot que restituísse a saúde à criança. Após examinar cuidadosamente o enfermo, o eloquente deus- íbis lançou-se em abstractas cogitações, extravasadas sob a forma de praguejos pontuais e monólogos facundos e muito pouco apropriados. Exasperada com a sua inércia, Ísis arrebata Tot aos seus devaneios, admoestando-o severamente por “sábio ser o seu coração, mas terrivelmente demoradas as suas resoluções”.

Detalhes e vocabulário egípcio:
Tot era designado, em egípcio, por Djehuti, numa hipotética alusão a Djehut, a décima quinta província do Baixo Egipto, cuja denominação evocava o íbis, um dos seus animais sagrados.
Tal como já referido, o insigne mestre do Verbo era representado como um homem com cabeça de íbis, ornada pelo disco da Lua ou por uma coroa atef com o disco, uraeus e chifres. Em suas mãos, Tot sustém um cálamo e uma paleta de escriba. É sob esta forma que o deus- íbis regista os nomes dos faraós nas folhas da divina árvore persea, aquando da sua ascensão ao imponente trono do Egipto. Todavia, Tot surge-nos igualmente enquanto íbis ou, eventualmente, sob a forma de um babuíno.
Emissária das leis cósmicas, a magia, ciência divina personificada por Tot, é soberana do universo egípcio, instituindo um reinado de coesão espiritual que encontra na “mulher sábia” uma das suas maiores depositárias,. Tal como nos sugerem os arquivos de Set Maet, “Lugar de Verdade”, povoação alguma, independentemente do seu tamanho, se privava da protecção destas grandes magas. Habilitada a instaurar a harmonia onde o caos reinava, a exonerar as forças malignas e a preconizar o futuro, esta vidente surge-nos com frequência ajoelhada defronte de Tot, que sem hesitar a convidava a franquear a sua morada de sabedoria.
Sechat- Deusa da escrita e da medição, usualmente retractada como uma mulher envergando um vestido de pele de pantera. Em sua cabeça, insinuava-se um toucado com uma estrela de sete pontas e um arco. Juntamente com Tot, a sua versão masculina, inscrevia o nome dos faraós indigitados na sagrada árvore persea. A II Dinastia concedeu-lhe o privilégio de assistir o regente terreno no ritual de fundação de “esticar a corda”. A partir do Médio Império, a sua efígie é uma constante nos cenas dos templos dedicadas às campanhas militares, sendo representada a registar o número de cativos e despojos de guerra conquistados pelo Egipto. O Império Novo associou-a também ao festival jubilar Seb. A deusa Sechat consagrou-se igualmente regente da Casa da Vida, onde se compunham os rituais vitais para a conservação da harmonia cósmica e onde os faraós eram iniciados nos enigmas da sua função. Patrona das bibliotecas e protectora dos textos fundamentais, Sechat regista a oratória da vida com seu pincel divino, ditando nos contornos de suas palavras o destino dos faraós, tal como é demonstrado no templo de Séti I em Abidos: “A minha mão escreve o seu longo tempo de vida, a saber: do que sai da boca da Luz Divina (Ré), o meu pincel traça a eternidade; a minha tinta, o tempo; o meu tinteiro, as inúmeras festas de regeneração.”


Verónica Freitas

DEUSA NÉFTIS

Qual peregrino de luz, o magnificente Sol da alma humana vagueia, cativo de um rumo fadado pela harmonia cósmica, pela excelsa abóbada celeste da vida, até alcançar, no apogeu da teosofia de seu esplendor, o etéreo santuário da paz eterna, edificado pela imortalidade do espírito sobre as nuvens elísias da sus extinção terrena. Franquear as portas do Ocidente, eterna pátria de luz, onde os justos, despojados da sua mortalidade, celebravam o rito da felicidade intemporal, constituía, no Antigo Egipto, o expoente máximo da terrena peregrinação pela beatífica vereda da rectidão espiritual.

Saciados os céus da alma humana na tempestade do viver, eterno festival de paixões em chama, onde, entre a sumptuosidade de um banquete de relâmpagos se brindava à luz da verdade, o corpo, lavado do seu sentir pela chuva da morte, era então convertido em múmia, para que, no fausto de um funeral destinado a contar a natureza eternal do espírito, este vosso sepultado de forma honrosa. Um surpreendente halo de festividade nimbava os funerais, quão clímax da existência, em torno do qual o pensamento dos Egípcios orbitava, entre um rol imensurável de preparativos e economias. Inebriados com promessas de imortalidade, apressavam-se a erguer e ornamentar túmulos, a adquirir os vitais caixões, seguidos de sumptuosas imitações de componentes do seu quotidiano, que o defunto desejava que o acompanhassem na sua derradeira viagem. Na realidade, esta ideologia era alimentada por uma fracção do produto nacional bruto, que, num ápice, desvanecia-se, entre as mãos de um conjunto económico, encarregue de ocupar-se da fabricação de determinados arranjos funerários. A oeste das cidades egípcias, palco da extinção do fulgor solar, estende-se a imensidão da orla do deserto, sobre a qual foram, imponentemente, erigidas as sagradas necrópoles, sublimes complexos funerários. Desta forma, perto de Mênfis, saúdam-nos Saqqara, Guiza, Abusir, entre inúmeros outros.

Por seu turno, Tebas entregou a sua necrópole à margem ocidental do Nilo, eterna residência de Meretseger, deusa do Ocidente, cujo nome significa “Aquela que ama o silêncio” e que, na realidade, se tornou na perpétua vigilante do deus- chacal Anúbis. Ultimados setenta dias nas moradias dos embalsamadores, o corpo já mumificado é enfim depositado num caixão aberto, faustosamente recamado, que se coloca, de seguida, sobre um carro de arrasto, puxado por uma junta de bois ao longo de todo o soberbo cortejo fúnebre. Precedendo-o, eleva-se a fragrância dos incenso espalhados pelos sacerdotes e os lamentos lancinantes das carpideiras ( elementos vitais num funeral, mas, que, dado o seu elevado custo, eram apenas acessíveis aos mais abastados), que caminham com os cabelos despenteados e os bustos nus; fulguram as jóias, móveis, vestes, cofres e cosméticos, transportados por escravos até à derradeira morada do morto; e escutam-se os passos lentos da família e dos amigos. Uma tempestade de lamentos sacia, num banquete de relâmpagos de dor e trovões de gritados pelo sofrimento, a sacra Natureza espiritual do defunto. Num eterno brinde à saudade, realizado que as lágrimas vertidas pelos céus de seus olhares, as carpideiras recitam fórmulas harmoniosas, que, quais estrelas guias, conduziriam a alma dos entes queridos até ao fecundo paraíso do Além. De facto, estas mulheres, cantoras da deusa Háthor, desfrutavam de um diversificado leque de textos e cânticos, nos quais era evocado o deserto de intempéries que o espírito nómada do defunto teria de atravessar, para alcançar o sublime oásis da regeneração, onde a sua sede de vida seria por fim saciada.
 
Às duas carpideiras primordiais, concede-se o epíteto de “djeryt”, isto é, “milhafres fêmea”, incarnando assim as aves de rapina que velavam pelo sarcófago. As suas etéreas silhuetas inebriam, adornam e purificam igualmente a barca sagrada que permite ao ataúde alcançar as acolhedoras margens do éden dos juntos. Estas duas aves não são senão poema de luz inspirado por Ísis, “a grande carpideira” e Néftis, “a pequena carpideira”. Qual jardim de constelações, semeado no cosmos da sublimidade, Néftis não desabrochava para o conhecimento, quando privada da Primavera de luz, incarnada por sua irmã. Juntas, inebriavam o Infinito com o perfume de harmonia fraternal que se desprendia das rosas de estrelas florescidas da sua união. Pertencente à última geração celestial da famigerada enéade de Heliópolis, Néftis é fruto colhido do paraíso de amor sonhado pela fusão do céu, Nut, e da terra, Geb. Embora o sagrado ourives do matrimónio tenha entretecido o seu destino ao de Seth, seu irmão, foi Osíris, divino esposo de Ísis, quem a convidou a saciar a sua sede no cálice de uma outra vida, ao oferecer-lhe um filho: o deus chacal Anúbis. Numa complementaridade cobiçada pela terra e pelo céu, Ísis é mãe de Hórus, enquanto que Néftis se revela sua ama, tal como sugere o seguinte texto: “Ele é Hórus. Sua mãe, Ísis deu-o à luz, ao passo que Néftis embalou-o”. Personificando o eterno jogo de luzes e sombras perpetrado pelo dia e pela noite, Ísis incarna o nascimento e a luz, enquanto que, num contraste alucinante, Néftis estigmatiza o exício e a penumbra, materializando nesta excelsa fusão toda a magia dispersa pelo Universo.

Por oposição a sua irmã, cujo culto era celebrado em diversos templos, disseminados um pouco por todo o país, Néftis não era venerada de forma isolada, privando-se assim de uma existência autónoma, facto que justificava a sua constante aparição ao lado de Ísis. A sua associação ao culto dos mortos aflorou do mito osírico, no decorrer do qual a sua presença é incontornável. Este, tal como referido anteriormente, relata que, após o assassinato e desmembramento de Osíris, as duas irmãs unem-se para recolher todos os pedaços do corpo do defunto, num ritual álgido, ritmado por lamentações vestidas de lágrimas, saudade e dor. Coroada de sucesso a diligência a que se haviam proposto, Ísis e Néftis entrelaçam os acordes de sua voz numa melopeia plangente, ornada de comoção: “Graças a nós olvidaste a mágoa. Nós reunimos teus membros e velámos por teu corpo. Vem ao nosso encontro para que o teu inimigo seja esquecido. Regressa sob a forma que detinhas na terra. Exonera a tua ira e concede-nos a tua clemência, Senhor. Retoma a herança do País Duplo (Egipto), tu, o deus único, cujos desígnios revelam-se benéficos para as divindades. Retorna, pois, sem receios, à tua morada!” A iluminada semente de luz depositada pelo amor de Ísis e pela compaixão de Néftis, no éden do horizonte, desponta por fim sob a forma da flor da aurora, cuja beleza orvalhada de feitiços de paixão anuncia ao céu a ressurreição de Osíris, restituindo o seu trono de turquesas ao Sol da vida eterna. Numa flagrante analogia deste magnificente episódio da mitologia egípcia, Néftis e sua irmã são incumbidas de velar pelo morto, no insondável enigma do Além. Por conseguinte, esta primeira era representada na cabeceira dos sarcófagos reais do Império Novo, enquanto que, por seu turno, Ísis surgia aos pés do mesmo, da mesma forma que não raras vezes eram evocadas em cenas do julgamento dos mortos. É função das duas deusas serem efígie do barco que transportará o defunto na sua derradeira viagem até ao país da luz. De igual modo, e juntamente com Selkis e Neit, oferecem a sua protecção aos vasos canópicos, onde as vísceras do falecido eram conservadas.
Néftis, ou em egípcio Nebhwt, ou seja, “A Senhora da Casa”, era retractada como uma mulher, cuja cabeça se encontrava adornada com um toucado formado por dois símbolos hieroglíficos, destinados a representar o seu nome, isto é, “neb”, o cesto, e “hwt”, a planta da casa. Esta deusa foi igualmente associada ao deus babuíno Hapi e, na Época Baixa, à deusa Anuket, tendo com ela sido adorada em Kom Mer, no Alto Egipto. Egípcias como Ny-Anq-Háthor isto é, “Aquela que pertence à vida, Háthor” abraçavam a prerrogativa de incarnarem as duas deusas irmãs, recitavam as lamentações proferidas por Ísis e Néftis num ritual que restituíra a vida a Osíris. Na festa das carpideiras, cânticos e músicas inebriavam os sentidos, preludiando o renascer do deus assassinado. Convertida a essência humana em essência divina, pela transfiguração de todos os defuntos em Osíris, as carpideiras suplicavam a ressurreição espiritual do morto, ao longo de todo o cortejo fúnebre. As cenas representativas dos mesmos são uma constante nas paredes dos túmulos de personagens tão proeminentes, como é o caso de Ramsés, que legou à eternidade os lamentos embebidos em lágrimas e impregnados de um desespero ensaiado, que as carpideiras proferiam, entusiasticamente.

Quando por fim se achava diante do túmulo, a múmia é então retirada do seu caixão e suspensa nos braços de um sacerdote embalsamador, cujo semblante mantém-se oculto por uma máscara de Anúbis. O incenso queimado por um outro sacerdote, em geral no limiar da sua carreira e, geralmente, filho do morto, entrelaça-se com as fórmulas mágicas proferidas, solenemente, por um seu homólogo. Seguidamente, dá-se a cerimónia da “Abertura da Boca”, realizada com o fim de conceder, uma vez mais, àquele que faleceu o dom do Verbo, da visão, da audição e do olfacto, de forma a permitir-lhe saborear as dádivas alimentares, deixadas no túmulo. Findo este ritual, o morto acha-se reanimado, num processo que pode, muitas vezes, prolongar-se por vários dias. Entre despedidas, o corpo do morto é, uma vez mais, restituído ao repouso do seu caixão, sendo rodeado por tudo o que podesse vir a ser-lhe necessário no Além. Deste modo, com o fito de impedir que os egípcios abastados necessitassem de entregar-se a qualquer tarefa laboral (nomeadamente, lavrar, ceifar ou bater trigo, entre outros árduos trabalhos), colocavam-se no seu túmulo pequenas figuras de madeira representando os servidores de diversos corpos de ofício e os animais domésticos, além de réplicas em miniatura de casas e barcos. Por seu turno, os príncipes ou outras distintas personagens eram enaltecidas com um inexaurível exército de pequenas estatuetas de madeira, concebendo-se assim algo similar a um mundo artificial. Porém, em meados do segundo milénio antes de Cristo, este hábito de dispor no túmulo figurinhas representando servidores foi substituído pelo costume de colocar na derradeira morada do defunto uma sósia em miniatura deste, representada, habitualmente, em forma de múmia e colocada sobre uma caixa de menores proporções. Esta sósia esculpida, geralmente, em argila, madeira ou metal, achava-se incumbida da tarefa de efectuar, no reino dos mortos, o trabalho correspondente ao defunto. 
Na sua derradeira viagem, as crianças faziam-se acompanhar de seus brinquedos, geralmente, piões, bonecas articuladas, animais de brinquedo, entre outros. Porém, também os momentos mais sóbrios e conscenciosos eram recordados ao serem também depositados nos túmulos os seus cadernos em papiro ou ardósia, contendo exercícios de caligrafia, aritmética, etc.. As disparidades sociais e económicas estavam latentes na forma como os Antigos Egípcios eram sepultados, uma vez que em contraste com as prerrogativas concedidas aos mais abastados, que detinham a possibilidade de desfrutarem do seu último sono num túmulo ao abrigo dos chacais e outras feras do deserto, os mais humildes não possuíam recursos económicos que lhes permitissem mandar embalsamar o seu corpo. Consequentemente, os seus restos mortais jazem, isentos de um sarcófago, sob um metro de areia, onde acabam por ser dilacerados pelo tempo, que não lhe concederia o direito à imortalidade. Temendo a hedionda perspectiva de uma morte definitiva, os menos afortunados empregavam todas as suas forças no sentido de reunir uma determinada quantia que lhes permitisse realizar um funeral decente ou, pelo menos, para reservar um lugar nos inúmeros túmulos colectivos, que se encontravam escavados na rocha.

A tão desejada “Casa da Eternidade”, consistia numa tumba escavada na falésia, e que veio substituir as imponentes pirâmides e mastaba, onde o corpo permanecia oculto num poço funerário subterrâneo ou num local secreto, precedido por uma parte aberta, que permitia um acesso ao exterior: a capela, dotada de uma tela na qual se encontra inculcado o nome do defunto ou, eventualmente, a sua efígie e onde se ergue a mesa das oferendas. Paralelamente, é erigida uma porta fictícia (ponto de ligação entre o mundo dos mortos e o dos vivos), a qual o morto transpõe sempre que deseja usufruir das oferendas que lhe são levadas: pão, legumes, aves de capoeira e carne vermelha nos dias de festa. Concomitantemente, a sua alma desfruta do incenso que invade de prazer o seu olfacto e a sua sede é saciada pela salubridade da cerveja ou água fresca, que lhe deixam, regularmente, visto ele habitar na orla do deserto. Contudo, os longos períodos de caos ensinaram aos egípcios que até mesmo as dádivas “eternas” tornam-se efémeras, pelo que foram concebidas fórmulas, inscritas, mais tarde nas paredes, que permitiam ao morto desfrutar das oferendas, sempre que as pronunciasse. Assim, sobre inúmeras peças comemorativas, surge diversas vezes a seguinte prece: “Vós que viveis na terra e passais diante desta estela, indo e vindo, se ameis a vida e detestais a morte, dizei que há mil pães e mil potes de cerveja”.

Detalhes e vocabulário egípcio:
Keres- caixão, ataúde.
Geb, deus da terra, era, habitualmente, venerado pelos demais como um deus benevolente, dado haver brotado do seu corpo a vegetação e a água. Porém, a morte tornava-o cruel e malévolo, por tomar no interior do seu corpo os cadáveres dos mais humildes.
Carpideira- mulher paga para chorar nos funerais.
Protecção dos vasos canópicos do defunto - Os quatros filhos de Hórus detém o título de “Senhores dos Pontos Cardeais, função que preservam enquanto protectores dos vasos canópicos, que permitem que cada víscera seja correctamente velada pela deusa tutelar, ou seja:

          Sul: Deusa Ísis- mulher coroada com o símbolo usado na escrita de seu nome (trono de espaldar alto).
Amset- génio com cabeça de homem. Incumbência- protecção do fígado.
          Norte: Deusa Néftis- mulher coroada com os signos empregues na escrita de seu nome, isto é, cesto e planta da casa.
Hapi- génio com cabeça de babuíno. Incumbência- protecção dos pulmões.
          Este: Deusa Neit- mulher coroada com um emblema representativo de dois arcos juntos, no seu estojo.
Duamutef- génio com cabeça de chacal. Incumbência- protecção do estômago.
          Oeste: Deusa Selkis- mulher coroada com a efígie de um escorpião ou, eventualmente, de uma larva encéfala.
Khebeh- Senuf- génio com cabeça de falcão. Incumbência- protecção dos intestinos.


Verónica Freitas  


DEUS OSÍRIS



Osíris é, indubitavelmente a mais célebre deidade do panteão egípcio e igualmente uma das mais complexas, pelo que não é, pois, de estranhar que os teólogos tenham procurado sintetizar os díspares aspectos desta personagem, através da criação de uma lenda. Para infortúnio de todos os amantes da mitologia egípcia a denominada “Lenda de Osíris” não é relatada integralmente por nenhum documento egípcio, fragmentando-se assim em trechos esparsos que relatam uma ou outra circunstância. Na realidade, a descrição completa das suas aventuras é nos oferecida por Plutarco, filósofo e escritor grego, através da sua obra “Ísis e Osíris”, na qual podemos verificar que a lenda se encontra dividida em três momentos fundamentais: o ímpio assassinato de Osíris; o nascimento e a infância de Hórus, seu filho; e o recontro entre este e Seth, aquele que lançara Osíris nos braços da morte.

Mas quem é afinal este deus, venerado por reis e plebeus, cujo coração encarnava a felicidade eterna, oferecida por seu pulsar a todos aqueles que o escutassem? Osíris despontou do seio da famigerada éneade de Heliópolis, denominação concedida à família divina criada por Átum-Rá, e na qual se reuniam nove poderosas deidades, cujas origens são narrados num mito arcaico da criação: Do caos inerte, que envolvia o universo, sob a forma do primitivo oceano Nun, emergiu uma colina de lodo, na qual poisou, latente no corpo de um escaravelho ou serpente, o deus- criador Átum, "Senhor Uno de nome misterioso", que através do seu sémen, gerou o primeiro casal divino, constituído por Shu, a atmosfera, e Tefnut, a humidade, os quais, por ser turno, procriaram Geb, a Terra, e Nut, o céu, cujos corpos achavam-se fundidos em eternas núpcias de luz. Devido à intervenção de Ra, a quem desagradava a visão de tal amor, Shu foi coagido a separar o céu e a terra. Porém, ao apartar tão sublimes amantes, o deus estava igualmente a sonhar uma imagem poética, incessantemente, representada pela arte egípcia, na qual, acima de Geb, surge um homem nu, alongado e enfeitado com plumas, erguendo nos braços Nut, de corpo semeado de estrelas.

O nascimento de Osíris, fruto dos amores entre o céu e a terra é nos relatado por um mito que não carece de originalidade: Quando o deus- sol Ra abraçou a percepção de que no jardim da alma de Nut, desabrochava a rosa do desejo, cujo perfume incensava os seus encontros clandestinos com Geb, ele tomou a resolução de confiná-lo ao álgido Inferno de uma maldição: a deusa é proibida de dar à luz no período de tempo compreendido pelo calendário oficial. Desesperada, Nut, que se encontrava grávida de quíntuplos, resolve então pedir ajuda a Thot, senhor do tempo, que segundo alguns referem, lhe dedica uma paixão secreta. Após haver meditado sobre todas as soluções plausíveis, Thot enlaça então a resolução de jogar aos dados com a Lua. Abençoado pela Fortuna, o deus ganha a partida e obtém cinco dias suplementares no calendário. Nestes cinco dias, considerados como distintos do ano de doze meses, a maldição perdia o seu efeito, pelo que Osíris pôde enfim sublimar o mundo com seu nascimento, ocorrido no primeiro destes dias. Segundo a lenda, no instante em que Osíris floresceu para a vida, uma voz incendiou os céus com o fogo da seguinte anunciação: “O Senhor de tudo veio ao mundo!”. Algumas fontes referem também que um certo Pamyles escutou uma voz provinda de um templo tebano, que, num grito tonitruante lhe anunciou que o magnânimo Osíris, rei dos céus e da terra, havia nascido. No segundo dos dias suplementares, Nut deu à luz Hórus, o Antigo; no terceiro, o deus Seth; no quarto, Ísis; e, por fim, no quinto, Néftis, desposada por Seth.
É na qualidade de primogénito, que Osíris herda a soberania terrestre, pelo que, após unir-se a Ísis em esponsais divinos, ascendeu ao trono do Egipto, iluminando este país com o Sol de magnanimidade e indulgência que dourava a sua alma. Reinando como soberano da terra, Osíris arrebatou os egípcios às garras da selvajaria que os escravizara até então, concedeu-lhes leis e fê-los descobrir a arte de prestar culto aos deuses. Por seu turno, Ísis, a quem a corrente prática de canibalismo horrorizava, ofereceu aos Homens o trigo e a cevada, que Osíris os ensinou a cultivar, levando-os a abdicar dos seus costumes antropófagos, em prole de uma dieta de cereais. Para além disso, Osíris é conhecido por haver sido o primeiro a colher frutos das árvores, a assentar a vinha em estacas e a pisar as uvas, visando a confecção de vinho. Na ânsia de enriquecer o tesouro da humanidade com a jóia rara do conhecimento, Osíris delegou a Ísis todas as responsabilidades subjacentes ao governo do Egipto e percorreu o mundo, saciando a sua sede com o cálice da civilização e a sua fome com o desvendar dos segredos da agricultura. O seu reinado foi assim uma sonata de harmonia perfeita, tocada no piano de luz da felicidade suprema. Todavia, em breve um artífice das trevas consagrado mestre da sua eterna confraria de sombras e medos, iria esculpir o mais nefasto silêncio, pois apesar dos poderes inerentes à sua divindade, Osíris viria a aproximar-se da humanidade, ao partilhar com ela a vereda da morte. Seu irmão Seth, esposo de Néftis, cuja alma era escrava da inveja, cobiça e ódio, ofereceu um fausto banquete, no qual exibiu uma extraordinária urna, prometendo oferecê-la, a quem nela coubesse.

Quando Osíris aceitou o desafio, Seth selou a urna e arremessou-a ao Nilo. Ao aperceber-se de que, após uma apaixonada busca, Ísis a havia encontrado, Seth tornou a apoderar-se dela, retalhando o corpo do irmão, para lançá-lo, novamente, ao rio. Desesperada, Ísis tomou então a resolução de recuperar os catorze fragmentos do cadáver de Osíris, percorrendo, para tal efeito, todo o país. Após conquistado o sucesso, Anúbis, deus do embalsamamento, possuidor de uma cabeça de chacal, e que muitos proclamam como filho de Osíris e de Néftis, reuniu os catorze fragmentos do cadáver do poderoso deus, enrolando-os em ligaduras, com o fito de criar a primeira múmia. Ísis tomou então a forma de um falcão fêmea, de cujas asas o seu esposo recebeu, uma vez mais, a vida que havia perdido, podendo então gerar o deus- falcão, Hórus, herdeiro do trono que o seu tio Seth havia usurpado. Ultimado este acto, Osíris necessitou de regressar ao submundo, tornando-se no "Senhor da Eternidade", soberano dos mortos, que preside aos julgamentos do além. É representado na arte egípcia como um homem de rosto esverdeado, qual lodo que concebe a vida do Egipto, ostentando as insígnias do poder: coroa, ceptro em gancho e chicote. Contudo, o seu corpo assemelha-se rígido, dado surgir como uma múmia enfaixada. Este mito reflecte flagrantemente uma paixão, representando Osíris como um ser que, na terra, foi vítima de uma traição que o teria confinado à extinção eterna, caso um amor isento de limites não se houvesse oposto a tão lúgubre fortuna, reinventando em seu corpo a arte perdida da vida, através de uma esplendorosa ressurreição. Compreende-se assim que todos procurem a benção deste deus, uma vez que somente ele coroa o firmamento da vida com o arco-íris da eternidade. Assim, não constitui qualquer surpresa verificar que no Antigo Império, o faraó defunto, na ânsia de com o deus se identificar, recebia o epíteto de Osíris, enquanto que o regente abraçava a denominação de Hórus. Todavia, vicissitudes político- sociais ocorridas no final do mesmo, permitiram que a benção de Osíris deixasse de ser prerrogativa exclusiva dos soberanos, estendendo-se assim a todos funcionários. No entanto, nem sempre Osíris usufruiu desta fama, sendo pois fruto de uma prolixa evolução.
Na realidade, Osíris foi venerado desde uma época muito antiga, principiando por encarnar um deus da fertilidade, relacionado com o milho, com o ciclo do seu enterramento como semente, o seu tempo de repouso debaixo da terra, a sua germinação e, finalmente, o seu retorno à vida. Era sua, portanto, a incumbência de propiciar aos egípcios uma boa colheita, sendo também responsável pela inundação do Nilo. À medida que a sua importância aumentava, Osíris assimilou características de outros deuses, os quais substituiu gradualmente. Em Mênfis, por exemplo, adoptou as características funerárias de Sokaris e, em Abidos, usurpou a identidade e o culto de Khentiamentiu, deus dos mortos e soberano das necrópoles. Posteriormente, integrou a cosmogonia de Heliópolis, transformando-se no legítimo herdeiro de Geb e Nut. Como símbolo da ressurreição, Osíris supervisionava as entradas no seu mundo, surgindo como um Sol, durante o poente. O culto de Osíris e Isís proliferou-se, com surpreendente popularidade, na bacia mediterrânea, durante a Época Baixa (664-332 a.C./ XXVI- XXX Dinastias), influenciando, segundo muitos historiadores também o cristianismo, com os seus ensinamentos sobre morte e ressurreição. Osíris, Ísis e Hórus formaram a Tríade (família constituída por três divindades) de Abidos, cidade onde se centralizou o seu culto, celebrado num dos maiores santuários egípcios, em cujo interior jazia a cabeça do deus da morte. Era de facto naquela que viria a tornar-se na capital da oitava província do Alto Egipto, que decorria o festival anual de Osíris, ao longo do qual a barca do deus era levada em procissão e a vitória de Osíris sobre os seus inimigos celebrada.

Todavia, também outras cidades foram iluminadas pela benção de Osíris, ao receberem partes do corpo retalhado do deus, salientando-se Busíris (“Domínio de Osíris” ou “Lugar de Osíris”, no Delta Central, como uma das mais famosas, dada a sua relação com a espinha dorsal de Osíris. Por seu turno, Per- Medjed, capital da 19ª capital do Alto Egípcio, estava ligada ao mito de Osíris, através do seu falo, que, segundo a tradição, jamais foi descoberto por Ísis.


Detalhes e Vocabulário Egípcio:
Eneada de Heliópolis: família divina constituída por Átum, deus criador, Tefnu, humidade, Shu, atmosfera, Geb, terra, Nut, céu, Osíris, Ísis, Néftis e Seth.
Ousir- Osíris
Neb djed- O Senhor da Eternidade.
Douat- submundo
Sah- múmia


Verónica Freitas

DEUS HORUS

Hórus, mítico soberano do Egipto, desdobra as suas divinas asas de falcão sob a cabeça dos faraós, não somente meros protegidos, mas, na realidade, a própria incarnação do deus do céu. Pois não era ele o deus protector da monarquia faraónica, do Egipto unido sob um só faraó, regente do Alto e do Baixo Egipto? Com efeito, desde o florescer da época história, que o faraó proclamava que neste deus refulgia o seu ka (poder vital), na ânsia de legitimar a sua soberania, não sendo pois inusitado que, a cerca de 3000 a. C., o primeiro dos cinco nomes da titularia real fosse exactamente “o nome de Hórus”. No panteão egípcio, diversas são as deidades que se manifestam sob a forma de um falcão. Hórus, detentor de uma personalidade complexa e intrincada, surge como a mais célebre de todas elas. Mas quem era este deus, em cujas asas se reinventava o poder criador dos faraós? Antes de mais, Hórus representa um deus celeste, regente dos céus e dos astros neles semeados, cuja identidade é produto de uma longa evolução, no decorrer da qual Hórus assimila as personalidades de múltiplas divindades.

Originalmente, Hórus era um deus local de Sam- Behet (Tell el- Balahun) no Delta, Baixo Egipto. O seu nome, Hor, pode traduzir-se como “O Elevado”, “O Afastado”, ou “O Longínquo”. Todavia, o decorrer dos anos facultou a extensão do seu culto, pelo que num ápice o deus tornou-se patrono de diversas províncias do Alto e do Baixo Egipto, acabando mesmo por usurpar a identidade e o poder das deidades locais, como, por exemplo, Sopedu (em zonas orientais do Delta) e Khentekthai (no Delta Central). Finalmente, integra a cosmogonia de Heliópolis enquanto filho de Ísis e Osíris, englobando díspares divindades cuja ligação remonta a este parentesco. O Hórus do mito osírico surge como um homem com cabeça de falcão que, à semelhança de seu pai, ostenta a coroa do Alto e do Baixo Egipto. É igualmente como membro desta tríade que Hórus saboreia o expoente máximo da sua popularidade, sendo venerado em todos os locais onde se prestava culto aos seus pais. A Lenda de Osíris revela-nos que, após a celestial concepção de Hórus, benção da magia que facultou a Ísis o apanágio de fundir-se a seu marido defunto em núpcias divinas, a deusa, receando represálias por parte de Seth, evoca a protecção de Ré- Atum, na esperança de salvaguardar a vida que florescia dentro de si.

Receptivo às preces de Ísis, o deus solar velou por ela até ao tão esperado nascimento. Quando este sucedeu, a voz de Hórus inebriou então os céus: “ Eu sou Hórus, o grande falcão. O meu lugar está longe do de Seth, inimigo de meu pai Osíris. Atingi os caminhos da eternidade e da luz. Levanto voo graças ao meu impulso. Nenhum deus pode realizar aquilo que eu realizei. Em breve partirei em guerra contra o inimigo de meu pai Osíris, calcá-lo-ei sob as minhas sandálias com o nome de Furioso... Porque eu sou Hórus, cujo lugar está longe dos deuses e dos homens. Sou Hórus, o filho de Ísis.” Temendo que Seth abraçasse a resolução de atentar contra a vida de seu filho recém- nascido, Ísis refugiou-se então na ilha flutuante de Khemis, nos pântanos perto de Buto, circunstância que concedeu a Hórus o epíteto de Hor- heri- uadj, ou seja, “Hórus que está sobre a sua planta de papiro”. Embora a natureza inóspita desta região lhe oferecesse a tão desejada segurança, visto que Seth jamais se aventuraria por uma região tão desértica, a mesma comprometia, concomitantemente, a sua subsistência, dada a flagrante escassez de alimentos característica daquele local. Para assegurar a sua sobrevivência e a de seu filho, Ísis vê-se obrigada a mendigar, pelo que, todas as madrugadas, oculta Hórus entre os papiros e erra pelos campos, disfarçada de mendiga, na ânsia de obter o tão necessário alimento. Uma noite, ao regressar para junto de Hórus, depara-se com um quadro verdadeiramente aterrador: o seu filho jazia, inanimado, no local onde ela o abandonara. Desesperada, Ísis procura restituir-lhe o sopro da vida, porém a criança encontrava-se demasiadamente débil para alimentar-se com o leite materno. Sem hesitar, a deusa suplica o auxílio dos aldeões, que todavia se relevam impotentes para a socorrer.
Quando o sofrimento já quase a fazia transpor o limiar da loucura, Ísis vislumbrou diante de si uma mulher popular pelos seus dons de magia, que prontamente examinou o seu filho, proclamando Seth alheio ao mal que o atormentava. Na realidade, Hórus ( ou Harpócrates, Horpakhered- “Hórus menino/ criança”) havia sido simplesmente vítima da picada de um escorpião ou de uma serpente. Angustiada, Ísis verificou então a veracidade das suas palavras, decidindo-se, de imediato, e evocar as deusas Néftis e Selkis (a deusa- escorpião), que prontamente ocorreram ao local da tragédia, aconselhando-a a rogar a Ré que suspendesse o seu percurso usual até que Hórus convalescesse integralmente. Compadecido com as suplicas de uma mãe, o deus solar ordenou assim a Toth que salvasse a criança. Quando finalmente se viu diante de Hórus e Ísis, Toth declarou então: “ Nada temas, Ísis! Venho até ti, armado do sopro vital que curará a criança. Coragem, Hórus! Aquele que habita o disco solar protege-te e a protecção de que gozas é eterna. Veneno, ordeno-te que saias! Ré, o deus supremo, far-te-á desaparecer. A sua barca deteve-se e só prosseguirá o seu curso quando o doente estiver curado. Os poços secarão, as colheitas morrerão, os homens ficarão privados de pão enquanto Hórus não tiver recuperado as suas forças para ventura da sua mãe Ísis. Coragem, Hórus. O veneno está morto, ei- lo vencido.”

Após haver banido, com a sua magia divina, o letal veneno que estava prestes a oferecer Hórus à morte, o excelso feiticeiro solicitou então aos habitantes de Khemis que velassem pela criança, sempre que a sua mãe tivesse necessidade de se ausentar. Muitos outros sortilégios se abateram sobre Hórus no decorrer da sua infância (males intestinais, febres inexplicáveis, mutilações), apenas para serem vencidos logo de seguida pelo poder da magia detida pelas sublimes deidades do panteão egípcio. No limiar da maturidade, Hórus, protegido até então por sua mãe, Ísis, tomou a resolução de vingar o assassinato de seu pai, reivindicando o seu legítimo direito ao trono do Egipto, usurpado por Seth. Ao convocar o tribunal dos deuses, presidido por Rá, Hórus afirmou o seu desejo de que seu tio deixasse, definitivamente, a regência do país, encontrando, ao ultimar os seus argumentos, o apoio de Toth, deus da sabedoria, e de Shu, deus do ar. Todavia, Ra contestou-os, veementemente, alegando que a força devastadora de Seth, talvez lhe concedesse melhores aptidões para reinar, uma vez que somente ele fora capaz de dominar o caos, sob a forma da serpente Apópis, que invadia, durante a noite, a barca do deus- sol, com o fito de extinguir, para toda a eternidade, a luz do dia. Ultimada uma querela verbal, que cada vez mais os apartava de um consenso, iniciou-se então uma prolixa e feroz disputa pelo poder, que opôs em confrontos selváticos, Hórus a seu tio. Após um infrutífero rol de encontros quase soçobrados na barbárie, Seth sugeriu que ele próprio e o seu adversário tomassem a forma de hipopótamos, com o fito de verificar qual dos dois resistiria mais tempo, mantendo-se submergidos dentro de água.

Escoado algum tempo, Ísis foi incapaz de refrear a sua apreensão e criou um arpão, que lançou no local, onde ambos haviam desaparecido. Porém, ao golpear Seth, este apelou aos laços de fraternidade que os uniam, coagindo Ísis a sará-lo, logo em seguida. A sua intervenção enfureceu Hórus, que emergiu das águas, a fim de decapitar a sua mãe e, acto contíguo, levá-la consigo para as montanhas do deserto. Ao tomar conhecimento de tão hediondo acto, Rá, irado, vociferou que Hórus deveria ser encontrado e punido severamente. Prontamente, Seth voluntariou-se para capturá-lo. As suas buscas foram rapidamente coroadas de êxito, uma vez que este nem ápice se deparou com Hórus, que jazia, adormecido, junto a um oásis. Dominado pelo seu temperamento cruel, Seth arrancou ambos os olhos de Hórus, para enterrá-los algures, desconhecendo que estes floresceriam em botões de lótus. Após tão ignóbil crime, Seth reuniu-se a Rá, declarando não ter sido bem sucedido na sua procura, pelo que Hórus foi então considerado morto. Porém, a deusa Hátor encontrou o jovem deus, sarando-lhe, miraculosamente, os olhos, ao friccioná-los com o leite de uma gazela. Outra versão, pinta-nos um novo quatro, em que Seth furta apenas o olho esquerdo de Hórus, representante da lua. Contudo, nessa narrativa o deus-falcão, possuidor, em seus olhos, do Sol e da lua, é igualmente curado.
Em ambas as histórias, o Olho de Hórus, sempre representado no singular, torna-se mais poderoso, no limiar da perfeição, devido ao processo curativo, ao qual foi sujeito. Por esta razão, o Olho de Hórus ou Olho de Wadjet surge na mitologia egípcia como um símbolo da vitória do bem contra o mal, que tomou a forma de um amuleto protector. A crença egípcia refere igualmente que, em memória desta disputa feroz, a lua surge, constantemente, fragmentada, tal como se encontrava, antes que Hórus fosse sarado. Determinadas versões desta lenda debruçam-se sobre outro episódio de tão desnorteante conflito, em que Seth conjura novamente contra a integridade física de Hórus, através de um aparentemente inocente convite para o visitar em sua morada. A narrativa revela que, culminado o jantar, Seth procura desonrar Hórus, que, embora precavido, é incapaz de impedir que um gota de esperma do seu rival tombe em suas mãos. Desesperado, o deus vai então ao encontro de sua mãe, a fim de suplicar-lhe que o socorra. Partilhando do horror que inundava Hórus, Ísis decepou as mãos do filho, para arremessá-las de seguida à água, onde graças à magia suprema da deus, elas desaparecem no lodo. Todavia, esta situação torna-se insustentável para Hórus, que toma então a resolução de recorrer ao auxílio do Senhor Universal, cuja extrema bonomia o leva a compreender o sofrimento do deus- falcão e, por conseguinte, a ordenar ao deus- crocodilo Sobek, que resgatasse as mãos perdidas. Embora tal diligência haja sido coroada de êxito, Hórus depara-se com mais um imprevisto: as suas mãos tinham sido abençoadas por uma curiosa autonomia, incarnando dois dos filhos do deus- falcão.

Novamente evocado, Sobek é incumbido da taregfa de capturar as mãos que teimavam em desaparecer e levá-las até junto do Senhor Universal, que, para evitar o caos de mais uma querela, toma a resolução de duplicá-las. O primeiro par é oferecido à cidade de Nekhen, sob a forma de uma relíquia, enquanto que o segundo é restituído a Hórus. Este prolixo e verdadeiramente selvático conflito foi enfim solucionado quando Toth persuadiu Rá a dirigir uma encomiástica missiva a Osíris, entregando-lhe um incontestável e completo título de realeza, que o obrigou a deixar o seu reino e confrontar o seu assassino. Assim, os dois deuses soberanos evocaram os seus poderes rivais e lançaram-se numa disputa ardente pelo trono do Egipto. Após um recontro infrutífero, Ra propôs então que ambos revelassem aquilo que tinham para oferecer à terra, de forma a que os deuses pudessem avaliar as suas aptidões para governar. Sem hesitar, Osíris alimentou os deuses com trigo e cevada, enquanto que Seth limitou-se a executar uma demonstração de força. Quando conquistou o apoio de Ra, Osíris persuadiu então os restantes deuses dos poderes inerentes à sua posição, ao recordar que todos percorriam o horizonte ocidental, alcançando o seu reino, no culminar dos seus caminhos. Deste modo, os deuses admitiram que, com efeito, deveria ser Hórus a ocupar o trono do Egipto, como herdeiro do seu pai. Por conseguinte, e volvidos cerca de oito anos de altercações e recontros ferozes, foi concedida finalmente ao deus- falcão a tão cobiçada herança, o que lhe valeu o título de Hor-paneb-taui ou Horsamtaui/Horsomtus, ou seja, “Hórus, senhor das Duas Terras”.
Como compensação, Rá concedeu a Seth um lugar no céu, onde este poderia desfrutar da sua posição de deus das tempestades e trovões, que o permitia atormentar os demais. Este mito parece sintetizar e representar os antagonismos políticos vividos na era pré- dinástica, surgindo Hórus como deidade tutelar do Baixo Egipto e Seth, seu oponente, como protector do Alto Egipto, numa clara disputa pela supremacia política no território egípcio. Este recontro possui igualmente uma cerca analogia com o paradoxo suscitado pelo combate das trevas com a luz, do dia com a noite, em suma, de todas as entidades antagónicas que encarnam a típica luta do bem contra o mal. A mitologia referente a este deus difere consoante as regiões e períodos de tempo. Porém, regra geral, Hórus surge como esposo de Háthor, deusa do amor, que lhe ofereceu dois filhos: Ihi, deus da música e Horsamtui, “Unificador das Duas Terras”. Todavia, e tal como referido anteriormente, Hórus foi imortalizado através de díspares representações, surgindo por vezes sob uma forma solar, enquanto filho de Atum- Ré ou Geb e Nut ou apresentado pela lenda osírica, como fruto dos amores entre Osíris e Ísis, abraçando assim diversas correntes mitológicas, que se fundem, renovam e completam em sua identidade. É dos muitos vectores em que o culto solar e o culto osírico, os mais relevantes do Antigo Egipto, se complementam num oásis de Sol, pátria de lendas de luz, em cujas águas d’ ouro voga toda a magia de uma das mais enigmáticas civilizações da Antiguidade.

Detalhes e vocabulário egípcio:
culto de Hórus centralizava-se na cidade de Edfu, onde particularmente no período ptolomaico saboreou uma estrondosa popularidade;
culto do deus falcão dispersou-se em inúmeros sub- cultos, o que criou lendas controversas e inúmeras versões do popular deus, como a denominada Rá- Harakhty;
as estelas (pedras com imagens) de Hórus consideravam-se curativas de mordeduras de serpentes e picadas de escorpião, comuns nestas regiões, dado representarem o deus na sua infância vencendo os crocodilos e os escorpiões e estrangulando as serpentes. Sorver a água que qualquer devotado lhe houvesse deixado sobre a cabeça, significava a obtenção da protecção que Ísis proporcionava ao filho. Nestas estelas surgia, frequentemente, o deus Bes, que deita a língua de fora aos maus espíritos. Os feitiços cobrem os lados externos das estelas. Encontramos nelas uma poderosa protecção, como salienta a famigerada Estela de Mettenich: “Sobe veneno, vem e cai por terra. Hórus fala-te, aniquila-te, esmaga-te; tu não te levantas, tu cais, tu és fraco, tu não és forte; tu és cego, tu não vês; a tua cabeça cai para baixo e não se levanta mais, pois eu sou Hórus, o grande Mágico.”.
out- embalsamadores
vabet- lugar de purificação


Verónica Freitas  

DEUS ANÚBIS


Qual estrela reinventado a imanência da sua luz no cosmos da imortalidade, onde a mítica constelação da vida se traduzia e renovava num fulgor eterno, Anúbis (Anupu em egípcio) iluminava a noite do panteão egípcio enquanto pilar que sustinha o templo de um mito intemporal que prometia às almas a eternidade.

Escravizados pelo alento de vogarem no regaço da imortalidade, superando os próprios limites da existência, os Egípcios conceberam a arte do embalsamamento, que, ao conservar os seus corpos, os arrebatava ao abominável espectro da deterioração, tal como sugere uma das muitas inscrições talhadas sobre os caixões: “Eu não deteriorarei. O meu corpo não será presa dos vermes, pois ele é durável e não será aniquilado no país da eternidade”. Esta arte divina, apta a enfeitiçar o tempo, tornando-o escravo daqueles que a ela recorriam, era ditada, reinventada e abençoada por Anúbis, guardião das sublimes moradas da eternidade, Soberano das mumificações e embalsamamentos, intermediário entre o defunto e o tribunal que o aguardava no Além e deidade cuja aparência é estigmatizada pelas incumbências de que é investido. Por conseguinte, e numa flagrante evocação dos cães e chacais que velavam pelas inóspitas e desérticas necrópoles, esta divindade surge como um animal da família dos Canídeos ou, então, como um homem detentor de uma cabeça de chacal. A mitologia egípcia revela-nos que Anúbis era fruto de uma ilegítima noite de amor vivida por Osíris nos braços de Néftis.

A lenda revela-nos que tão inusitada união dera-se aquando do retorno do então Soberano do Egipto ao seu magnífico país. Extenuando de uma viagem que o mantivera longe da sua pátria por uma eternidade, Osíris ardia em desejo de sentir o Sol que raiava no olhar de Ísis despir a mortalha de nuvens, tecida pela saudade, que vestia e sufocava os céus de sua alma. Ao vislumbrar Néftis, o deus enlaça-a então em seus braços, tomando-a pela sua esposa. E os seus sentidos, cegos pela paixão, revelam-se impotentes para lhe desvendar a traição que ele cometia, antes desta encontrar-se consumada. Graças a uma coroa de meliloto abandonada por Osíris no leito de Néftis, Ísis abraça a percepção de que o seu amado esposo havia-lhe sido infiel e, desesperada, confronta a sua irmã, que lhe revela que de tão ilídimas núpcias nascera um filho, Anúbis, o qual, temendo a cólera do seu esposo legítimo, Seth, ela havia ocultado algures nos pântanos. Ísis, a quem não fora concedido o apanágio de conceber um filho de Osíris, enleia então a resolução de resgatá-lo ao seu esconderijo, percorrendo assim todo o país até encontrar a criança. Acto contínuo, e numa notória demonstração da benevolência que lhe era característica, a deusa amamenta Anúbis, criando-o para tornar-se o seu protector e mais fiel companheiro.
A lenda de Osíris comprova que Ísis foi coroada de sucesso, uma vez que, após o desmembramento do corpo de seu esposo, Anúbis voluntariou-se prontamente para auxiliar a deusa a reunir os inúmeros fragmentos do defunto. Posteriormente, Anúbis participa com igual dedicação nos rituais executados com o fim de restituir a Osíris o sopro de vida e que lhe facultaram a concepção da primeira múmia, facto que legitimou a sua conversão no venerado deus do embalsamamento, eterno guia do defunto no Além. A sua crescente influência garantiu-lhe um posto relevante no tribunal composto por quarenta e dois juizes que julgava os recém- inumados. De facto, é ele quem conduz o morto até Osíris, apresentando-o ao tribunal por ele presidido, para de seguida proceder à pesagem do coração. Se porventura o morto desejar mais tarde regressar à terra, é Anúbis quem ele tem a obrigação de notificar previamente, dado que esta surtida só será exequível com o seu consentimento expresso, formalmente consignado sob a forma de um decreto.

As suas múltiplas funções permitem a este deus deter diversas denominações, embora todas elas se encontrem intrincadamente relacionadas com o seu papel na vida póstuma dos egípcios. Assim, Anúbis é reconhecido como “o das ligaduras”, como patrono dos embalsamadores, “presidente do pavilhão divino”, enquanto soberano do edifício onde a poesia da mumificação era declamada por peritos, “senhor da necrópole” ou então “aquele que está em cima da montanha”, designações que exaltavam a sua posição enquanto guardião dos túmulos e condutor dos defuntos nos traiçoeiros labirintos do mundo inferior. Como tal, não é de todo inusitado o rol interminável de hinos e preces a ele destinados, que encontramos não raras vezes nas paredes das mastabas mais antigas e igualmente no famigerado “Texto das Pirâmides”.

Anúbis constitui igualmente a deidade tutelar da décima sétima província do Alto Egipto, cuja capital, Cinopólis (“A Cidade dos Cães”), era o âmago do seu culto, não obstante a sua imagem ser também uma constante em relevos e textos figurativos existentes nas sepulturas reais ou plebeias do vale do Nilo. Com efeito, ao longo de toda a época faraónica, Anúbis usufruiu de uma inefável popularidade que se reflectiu na sólida implantação do seu culto nos díspares centros religiosos do país, particularmente em Tebas ou Mênfis. Em Charuna, localidade próxima do seu principal santuário, deparamo-nos com uma necrópole de cães mumificados, os quais eram venerados enquanto animais sagrados do deus.
Mas afinal que arte era esta que Anúbis protegia e representava? Originalmente, antes de haverem alcançado o seu meticuloso método de mumificação, os Egípcios envolviam os seus defuntos numa esteira ou pele de animal, visando que o calor e o vento dissecassem os cadáveres. Após um moroso processo evolutivo, os embalsamadores conseguiram enfim obter de forma artificial tal conservação natural, mediante um prolixo tratamento, que se prolongava por setenta dias. Uma vez ser necessário quantidades abundantes de água para lavrar os corpos, este ritual era realizado na margem Ocidental do rio Nilo (a considerável distância das habitações), onde os embalsamadores trabalhavam numa tenda arejada. Ultimado o referido período de tempo, os defuntos seguiam para as designadas “Casas de Purificação”, meras salas reservadas para as práticas de mumificação, onde cada gesto dos embalsamadores era talhado no olhar vigilante dos sacerdotes. Segundo inúmeros baixos-relevos e pinturas, estes primeiros ostentavam máscaras com a efígie do deus- chacal Anúbis, a deidade protectora dos mortos, talvez num desejo de atrair a sua benevolência.

O único exemplar que se conserva de semelhante máscara leva a crêr que esta servisse igualmente de protecção contra os diversos cheiros que fustigavam os embalsamadores. Alguns momentâneos descuidos destes levaram-nos a esquecerem-se, por vezes, de determinados instrumentos no interior das múmias, o que nos permite conhecer, aprofundadamente, os seus diversos utensílios de trabalho: ganchos de cobre, pinças, espátulas, colheres, agulhas, vasos munidos de bicos para deitar a goma escaldante sobre o cadáver e furadores com cabeça de forcado, para abrir, esvaziar e tornar a fechar o corpo. Dada a ausência de qualquer informação legada pelos Egípcios sobre as suas técnicas de embalsamamento, é necessário recorrer aos relatos de historiadores gregos, como Heródoto, para que a nossa curiosidade seja saciada. As suas descrições permitem-nos vislumbrar cada movimento dos embalsamadores. Em primeiro lugar, estes extraíam o cérebro do defunto pelas narinas, com o auxílio de um gancho de ferro. Seguidamente, “com uma faca de pedra da Etiópia” (segundo refere Hérodoto) efectuavam uma incisão no flanco do defunto, pelo qual retiravam os intestinos do morto.

Após terem limpo diligentemente a cavidade abdominal, lavavam-na com vinho de palma e preenchiam o ventre com uma fusão de mirra pura, canela e outras matérias odoríferas. Deixavam então o corpo repousar numa solução alcalina, baseada em cristais de natrão seco, onde permanecia durante setenta dias, ao fim dos quais a múmia era envolvida com mais de vinte camadas de ligaduras e coberta por um óleo de embalsamamento (uma mistura de óleos vegetais e de resinas aromáticas- coníferas do Líbano, incenso e mirra), que endurecia, rapidamente. Todavia, as suas propriedades anti-micósicas e anti-bacterianas não protegiam a estrutura do corpo esvaziado, dessecado e leve, facto comprovado pelo incidente ocorrido com a múmia do jovem faraó Tutankhámon, que se fragmentou, quando a tentaram remover do seu caixão. As faixas que envolviam o defunto eram, preferencialmente, de cores vermelho e rosa, jamais sendo utilizado para a sua concepção linho novo, mas sim, aquele que era obtido a partir das vestes que o morto envergava em vida. À medida que as ligaduras eram colocadas em torno dos defuntos, os sacerdotes presentes pronunciavam fórmulas sagradas. Simultaneamente, depositavam-se nos leitos de linho inúmeros amuletos profilácticos, tendo mesmo sido encontrada uma múmia com cerca de oitenta e sete destes objectos de culto. Entre estes encontrava-se ankh (vida), uma das mais preciosas dádivas oferecidas aos homens pelos deuses; o olho de oudjat, ou olho de Hórus, símbolo de integridade, que selava a incisão feita pelos embalsamadores, para retirar as entranhas do morto; um amuleto em forma de coração, concebido para assegurar que os defuntos seriam bem sucedidos nos seus julgamentos; e o escaravelho, esculpido em pedra, barro ou vidro. Este insecto enrola bolas de esterco, onde depõe os ovos. Os Egípcios creiam que um escaravelho gigante gerara o Sol de forma similar, rolando-o em direcção do horizonte, até ao firmamento. Uma vez que todas as manhãs este astro soberano desprende-se de um abraço de trevas, o escaravelho tornou-se num símbolo da ressurreição dos mortos. 
No exórdio da civilização egípcia, ultimados os seus processos de mumificação, as pessoas notáveis eram inumadas num caixão de forma rectangular, depositado num sarcófago de pedra, considerado como depositário das vida. Porém, ao longo da história, os caixões sofrem diversas metamorfoses, que alteraram, radicalmente, os seus simulacros. No Médio Império, os caixões tornaram-se antropomórficos, aumentando a sua produção. A própria múmia principiou a ter uma máscara de linho estucado, isenta de qualquer semelhança com o defunto. Na realidade, inúmeras múmias eram sepultadas em diversas urnas, sendo colocada uma dentro da outra, à semelhança das bonecas russas. Deste modo, a urna interna, mais ajustada, deveria encontrar-se apertada atrás. Durante muito tempo, os sarcófagos eram construídos em madeira. Não obstante, num período mais tardio, as urnas interiores eram efectuadas com camadas de papiro ou linho, o que se tornava mais economicamente acessível. Junto aos túmulos, repousavam cofres de madeira, que guardavam quatro recipientes, desde o mais humilde pote de barro ao mais faustoso vaso de alabastro. Estes canopes, cujo nome advém de Kanops, cidade situada a leste de Alexandria, continham as vísceras do defunto, uma vez que sem estas, o corpo não se encontraria completo. Inicialmente, esta pratica consistia em mais uma prerrogativa reservada aos soberanos do Egipto, mas com alguma rapidez estendeu-se igualmente aos sacerdotes e altos funcionários e, por fim, no Novo Império, a todos os egípcios abastados.

O fígado, o estômago, os pulmões e os intestinos eram envolvidos separadamente em tecidos de linho, formando embrulhos que eram, em seguida, depositados no interior dos díspares canopes, após terem sido impregnados com resina de embalsamamento. Em contrapartida, o coração, símbolo da razão, cerne do encontro do espírito e simulacro da alma, após ser submetido a um rigoroso tratamento que visava a sua conservação, era sempre recolocado no corpo do defunto, que iria necessitar dele, ao longo do seu julgamento no Além. Por seu turno, as intrínsecas vísceras eram entregues a quatro deidades protectoras, filhos de Hórus, cujas cabeças ornamentavam frequentemente as tampas dos canopes: Amset, com cabeça de homem, (cujo nome resulta de aneth, uma planta conhecida pelas suas propriedades de conservação), tornado protector do estômago; Hápi, possuidor de uma cabeça de babuíno, que vela pelos intestinos; Duamoutef, que ostenta uma cabeça de cão e cuja missão é proteger os pulmões; e Quebekhsenouf, detentor de uma cabeça de falcão, que preserva o fígado. A partir do Novo Império, eram representadas nas arestas dos canopes deusas protectoras, que, com as asas abertas, resguardavam os seus conteúdos. As mesmas deusas surgiam ajoelhadas nos cantos dos sarcófagos. Nut, a deusa da abóbada celeste, adorna a face interior do tampo do caixão.

Paradoxalmente, os mais humildes eram privados de qualquer prerrogativa, sendo sepultados no deserto, envoltos numa pele de vaca, uma vez que não possuíam meios para pagar o avultado preço da imortalidade.

Detalhes e vocabulário egípcio:
Djed- eternidade;
Keres- caixão;
Na Época Greco-Romana, Anúbis foi investido de novas incumbências, incarnando numa deidade cósmica, regente dos céus e da terra.
Etimologicamente, o epíteto “Anupus” pode possuir a sua origem na palavra inep, empregue com o significado de “putrificar”.
A imagem de Anúbis, nas suas díspares representações, é uma constante não apenas nas múmias e sarcófagos, mas também nas vinhetas dos papiros funerários. A estatueta de Anúbis com cabeça de cão selvagem constituía igualmente um amuleto, que colocava os defuntos sobre a protecção do deus. Evoca-se como exemplo o túmulo do jovem Tutankhámon, entre muitos outros.
A famigerada múmia do faraó Ramsés III sobreviveu indemne durante quase 3000 anos, graças à arte egípcia do embalsamamento e à preservação do deserto. Porém, alguns meses de permanência num museu teriam causado a sua total destruição, caso inúmeros egiptólogos não houvessem agido, prontamente.
out- embalsamadores
vabet- lugar de purificação, 'Casa da Purificação'


Verónica Freitas  

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